'Não me sinto a última bolachinha do pacote', diz Roger Machado

Em uma verdadeira aula de futebol, técnico fala sobre trabalho no Grêmio


Fonte: Diário Gaucho

Não me sinto a última bolachinha do pacote, diz Roger Machado
Foto: Diego Vara / Agencia RBS

Quer conquistar a simpatia de Roger Machado? Fale em livros de tática, troque figurinhas sobre escolas europeias de futebol, critique seu trabalho. Ele não leva a mal. O técnico que catapultou o Grêmio ao terceiro lugar do Brasileirão brilha o olho quando ouve novas opiniões. E extrai sabedoria de cada uma delas.

— O segredo de tudo é compartilhar, não reter o conhecimento para si — ensina.

Em 50 minutos de entrevista a ZH na tarde da última quinta-feira, Roger deu uma aula sobre futebol. Falou de suas metodologias de trabalho com a mesma naturalidade com que analisava a cultura do futebol brasileiro. Não fugiu nem mesmo da resposta sobre sua linguagem, que alguns consideram empolada.

Sobre a renovação de seu contrato, fez um certo suspense, como se não quisesse entregar a escalação para o adversário. Mas parece mera questão de tempo - as últimas nove rodadas do Brasileirão - para que o técnico assine seu novo vínculo até o final de 2016.

Acima de tudo, passou a certeza de ser o símbolo de uma nova geração de treinadores, antenada com o que há de mais moderno. E que pode mudar a cara do futebol brasileiro.

Exposição nacional
Não me sinto a última bolachinha do pacote. Sempre tento me manter numa relação de equilíbrio, talvez esse seja o meu principal objetivo tanto no sucesso como no fracasso. Se eu me sentir muito deprimido na derrota ou extremamente eufórico na vitória, isso pode me dar uma avaliação errada do que realmente aconteceu. Você tem de saber porque perde e porque ganha. E entender que, se estão falando bem do nosso trabalho, para mim é uma responsabilidade muito maior. Para manter este nível, eu tenho que fazer mais. Os adversários mapeiam nosso jogo.

Reconhecimento
Talvez seja por esta necessidade de renovação no perfil do treinador. E hoje eu vivo, felizmente, num momento em que duas gerações de técnicos estão dividindo o mesmo espaço. Temos grandes nomes que prestaram muitos serviços ao futebol brasileiro e uma safra nova que está vindo, com alguns ex-jogadores, outros não. Eu acredito muito na força do trabalho. A minha formação me deu a condição de fazer um trabalho que vem chamando a atenção. Se a gente não conquistou um título, estamos em busca disso. E acredito que o caminho seja esse.

Renovação já assinada?
Eu vi uns memes depois de falar que não deixaria o Grêmio sem um título. Num deles, parece o cabelo branco e a barba do meu irmão mais velho (risos). Nesse momento, não há nada decidido. Outros times estão crescendo. Se bobearmos, o que vem atrás encosta. Hoje, nada é mais importante do que prestar atenção 100% no Brasileirão. Nem minha renovação, nem futuros reforços. Não falo em contratações porque quem me trouxe até aqui foram esses caras. Tenho que valorizá-los. Quando cheguei, assinei com opção de renovação. Não fui procurado por outros clubes.

Referências
Mais do que profissionais, presto atenção nas escolas táticas. Nesta semana, tive o Hugo, ex-volante que jogou no Flamengo e mora há 20 anos na Holanda, fazendo estágio aqui. Antes de vir, me perguntou: o que posso fazer por ti? Eu disse: me traz uma mala de livros e vem dividir teu conhecimento. Converso com amigos, técnicos, jornalistas de outros lugares. Não é só quem vive dentro do campo que entende futebol. O ponto de vista que é diferente. Digo aos meus auxiliares que não preciso de profissionais que me digam amém. Se não fizerem meu contraponto, não vamos progredir. Da minha opinião, somada com a deles, surge uma nova, que ninguém tinha pensado separado. Essa troca é importante.

Escolas de futebol
A Alemanha se abasteceu muito da gente. A raiz do futebol mundial é baseada na nossa escola. Me baseio no futebol brasileiro, mas com metodologias de escolas que se desenvolveram nas questões táticas e coletivas, como a holandesa, a alemã e a espanhola. Mas o princípio é resgatar o nosso estilo de jogo. Quais são as características do futebol brasileiro? É ter a posse de bola, atacar com bastante gente, a vitória pessoal no terço final do campo. Os grandes times do futebol brasileiro sempre jogaram assim.

Novas ideias
Se eu não buscasse algo mais atual, estaria repetindo coisas de 40 anos atrás. Entendo que o Brasil, até 1970, resolvia a maior parte dos problemas em campo só com talento. A partir daí, o europeu desenvolveu muito a parte física e tática. Só voltamos a conquistar um título em 1994 quando nos conscientizamos que o talento deveria ser organizado. Não deixamos de fabricar os melhores jogadores. Só que precisamos de uma cultura tática mais refinada para que nosso talento faça a diferença.

Intensidade
A cultura dos jogadores está evoluindo. Antes, os treinos eram compartimentados. A semana começava com maratona, depois tiros de 300 metros. Hoje, é físico, amanhã é técnico e quarta é tático. Numa partida de 90 minutos, o jogador que mais toca na bola, que foi fominha, ficou pouco mais de dois minutos com ela. Se eu tirar a bola durante a semana, ele não vai tocar nela. As metodologias modernas propõem tudo integrado, físico, técnico e tático em campo reduzido, com ações cinco vezes maiores. O jogador toca muito mais na bola. É intensidade física com a bola.

Novos técnicos
Os educadores físicos começaram a ocupar este espaço com propriedade muito grande. O James (Freitas, auxiliar) não jogou bola. Tem a formação dele como educador que buscou conhecimento. Você precisa de didática para ensinar. Mas é importante, se não explicar com didática, mostrar como se cruza uma bola. A prática como jogador me deu algo importante: consigo enxergar em 3D. Se um jogador diz que não dá para fazer uma jogada, eu lembro do que fazia, calculo a distância e a velocidade, e digo que pode fazer sim. Executei esta ação por 18 anos.

Conduta do atleta
Eles tiveram dois dias de folga nessa semana. Dá para dormir até mais tarde, quem gosta de uma cervejinha pode tomar. Mas de terça para quarta-feira, tem que ir cedo para a cama. Se vier dormido ou mal alimentado, a chance de não ter o acréscimo que teria do trabalho e a possibilidade de lesão é maior. Se não se cuida e depois machuca no treino, a culpa cai no preparador físico. Mas e a noite que dormiu mal não influenciou na lesão? Hoje, eles estão muito mais conscientes. Eu não sou babá de jogador, ele precisa ter o mínimo de cuidado.

Linguagem complexa
Infelizmente, não consigo explicar de outra forma. Por vezes, estou respondendo, o olhar está longe porque estou repassando as coisas na minha cabeça para tentar transformar em informação. Se for falar de futebol com a minha filha, será dessa forma. Gosto, sou apaixonado por isso. Outro dia, achei na internet o blog de um menino de 15 anos, de Fortaleza, que faz análises de vários times. Nunca vi ninguém fazer uma análise com tanta propriedade. Precisamos de pessoas que gostem de ver o futebol com esse nível de profundidade.

Tecnologia no futebol
Durante muito tempo, renegamos os números e a estatística no futebol. Não adianta contratar um centroavante que faz 40 gols por temporada e um lateral que, em vez de cruzar, prefere chutar. É tiro no pé contratar um lateral sem ver os números dele. Nosso jogo é apoiado na construção dos volantes. O adversário nos mapeou e passou a trancar a saída deles, para matar na origem e diminuir nossa construção. Temos que buscar alternativas. Contratações têm que ser cirúrgicas. E hoje cada vez mais usamos a tecnologia para isso, para mapear os eventos do jogo.

Ligado 24 horas
Achei que estava ficando louco por pensar demais em futebol. Fiquei aliviado quando li no livro de Guardiola que o máximo que ele consegue ficar sem pensar em futebol são 30 minutos. Minha mulher me proibiu de levar trabalho para casa. Antes, eu levava o vídeo para assistir. Dormia e acordava duas horas depois, botava o computador no colo e revia a partida.

Calendário
Se ele não for organizado, o espetáculo perde brilho. O jogador precisa estar descansado para dar qualidade ao espetáculo. O futebol brasileiro voltará a ser protagonista quando ajustarmos o calendário e permitir que o treinador se desenvolva para pensar treino com complexidade. Não posso perder tempo no meu treino. Até no aquecimento tem que ter algum elemento do jogo.

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