Grohe ia de Campo Bom ao Olímpico para treinar Foto: Diego Vara / Agencia RBS
Moradores de cidades na região metropolitana, Marcelo Grohe e Alisson precisavam dar um jeito de ir até Porto Alegre para os treinos nas categorias de base de Grêmio e Inter.
No início dos anos 2000. Grohe era um guri espigado dos infantis do Grêmio. Alisson, o irmão caçula de Muriel. Aos 10 anos, recém entrara na Escola Rubra, inspirado pelo irmão, cinco anos mais velho e titular do sub-15 do Inter.
Nessa época, Valdenor Nietzke e a chusma de adolescentes passageiros de sua van percebiam que estava entre eles o goleiro titular do time principal do Grêmio. Valdenor é um paranaense do oeste do Paraná. Vivia 60 quilômetros da fronteira com o Paraguai. Parou em Ivoti no final dos anos 90 porque o Grêmio colocou o olho em seus dois guris. André era zagueiro da categoria 87. Giovane, goleiro da categoria 89.
Ele escolheu Ivoti porque era pequena e alemã como a sua Marechal Cândido Rondon. Para bancar a família, Valdenor comprou a van e firmou parceria com o Grêmio. Levava até o Olímpico seus guris e os demais que o clube indicava. Entre eles, Muriel, à época tricolor, e Grohe. Alisson virou passageiro um pouco depois.
— O Grohe era o mais centrado. Os meninos da van diziam que ele seria goleiro do Grêmio e iria longe. Na volta para casa, comentava do treino, da bola que não tinha defendido, do que precisava melhorar — lembra Valdenor, por telefone, desde Marechal Cândido Rondon, onde hoje transporta estudantes até as universidades de Toledo.
A disciplina de Grohe reverberava nos ouvidos de Giovane. O caçula do seu Valdenor escutava as lições de moral do pai, que vinham sempre com o exemplo do guri de Campo Bom.
— O pai dizia: "Tu tens que ser como o Marcelo, olha como ele se comporta, como presta atenção nos treinos e comenta tudo o que deve melhorar" — conta Giovane, hoje com 25 anos e goleiro titular do Lajeadense.
Giovane era da turma da bagunça. Um dos mais novos da trupe, fazia par com Alisson. Para os dois, a animação na van já bastava. Os treinos eram jogo de bola. Destoavam do ar responsável dos demais, já conscientes de que começavam a construir ali seu futuro. Grohe juntou essa percepção com a pragmática educação germânica trazida de casa. A receita de vida passada pela mãe, Dona Ilse, era simples: suor, trabalho, dedicação e disciplina.
Dona Ilse, hoje com 64 anos, nem poderia pensar diferente. O pai de Marcelo havia se afastado do trabalho de motorista da Citral por invalidez — morreu quando o goleiro completara 16 anos. Cabia a ela administrar o orçamento justo da casa simples de madeira da Rua Guarani, quase esquina com a Acrísio Martins Oliveira, na região central de Campo Bom. O salário de revisora na fábrica de calçados Catleia, onde trabalhou por 30 anos, garantia que nada faltasse ao único filho. Mas também nunca sobrava.
— O Marcelo sempre foi muito correto, centrado. Era, na nossa rua, o mais humilde. Mas tinha ótima base. A mentalidade da mãe dele era alemã, sempre ensinou que era preciso trabalhar para ter as coisas — conta Guilherme Kunzler, amigo de infância e padrinho de casamento do goleiro.
Hoje, Grohe se diverte com as histórias da infância, considerada por ele perfeita. Foto? Só se fosse em festa de algum amigo. Não tinha máquina em casa. Férias na praia? Isso era miragem no calor de Campo Bom. — Me sentia como o Chaves (personagem de TV): todos iam para Acapulco, e eu ficavam na cidade — compara, aos risos.
Por ironia, foi em um jogo na praia que ele acabou descoberto pelo Grêmio no verão de 2000. Disputava torneio em Capão da Canoa com sua escolinha, a JC Juventus, quando em meio ao jogo foi abordado pelo então diretor da base gremista José Alzir Flor da Silva.
— Tu és 87?
— Sim — respondeu Grohe, seco.
A pergunta pegou-o em má hora. Seu time levava 5 a 2 do Mont Serrat, um combinado das escolinhas de Grêmio e Inter. Além disso, sempre perguntavam sobre sua idade, desconfiados pelo fato de ser bem mais alto do que os outros guris.
O jogo acabou, e Grohe voltou para Campo Bom com convite para ir ao Olímpico. O que fez semanas depois. Como ele mesmo conta:
— Lembro bem, foi no dia 14 de março de 2000. Chovia fino, estava um diz bem cinza. Entrei no estacionamento do estádio, o time principal treinava no suplementar. Estava nervoso, nem atinei de olhar os jogadores. Imagina, era um guri de Campo Bom vindo para o Grêmio!
Grohe estava nervoso mesmo. No campo, Emerson Leão comandava o time da ISL, com estrelas como Zinho, Paulo Nunes, Amato, Astrada e Ronaldinho. Nunca sequer tinha cogitado de virar jogador. Treinava por distração e, agora, estava no Olímpico.
Mas a chance havia aparecido, e era preciso agarrá-la. A rotina ficou pesada. Aula até meio-dia, almoço em 15 minutos e espera pela van na BR-116 às 12h30min. Como Campo Bom era a última parada, chegava em casa perto das 21h. Dona Ilse o aguardava na porta. Sempre.
Gordinho espichou 17cm
Nessa mesma época, os Becker recebiam no apartamento em que moravam, no loteamento Mundo Novo, a visita de uma comissão do Inter. O à época vice-presidente Eduardo Lacher havia visto Muriel bater bola no quintal dos vizinhos, em Imbé, e queria tirá-lo do Olímpico. Mandou o diretor Mário Cassel e o técnico Osmar Loss até Novo Hamburgo.
Sentados na sala, tentavam convencer seu José e dona Magali de que o Beira-Rio era o melhor para o guri. Só que a conversa pouco avançava. Alisson, com a energia dos seus oito anos, interrompia a todo momento:
— Posso ir junto? Quero jogar também! Tem lugar pra mim?
— Tu és muito novo — argumentou o pai.
— Quanto mais novo melhor — rebateu o guri.
Uma década depois, Loss era o técnico de Alisson no sub-20. Não esquecia daquela reunião.
— O Osmar sempre me dizia: "Tu eras chato pra caramba, ficava pulando em volta da gente".
Na véspera do primeiro treino, Alisson e Muriel fizeram um fórum no quarto. O caçula queria treinar no gol. O mais velho insistia para que fosse na linha. Venceu. Foi de volante. Mas a confusão de piás correndo todos atrás de uma bola só o deixou meio perdido. No treino seguinte, comunicou o treinador:
— Como não tem goleiro, eu vou pro gol.
Ficou três meses. Voltou dois anos depois. Para ficar. Mas a mãe, Magali, desconfiava do futuro do caçula. Era gordinho e demorava a cair para defender a bola. Em conversas ao pé do ouvido, relatava seu temor ao marido, seu José. Sem contar que levava tudo na brincadeira. Aprontava sempre que havia uma brecha.
— O Alisson gostava muito de aprontar. Era gordinho, mas também alto — lembra o centroavante Leo, parceiro de infância, hoje no Cerâmica.
Dona Magali vigiava de cima a geladeira. Controlava com mão firme o refrigerante e os doces do caçula. Mesmo que gastasse energia correndo atrás da bola. Quando não estava jogando no Inter, se esforçava na linha no asfalto da rua de casa.
A família já havia trocado o apartamento pelo endereço atual, uma casa de dois pisos no seio da família. Aquela quadra no bairro Canudos é reduto dos Becker. Do lado, mora a prima. Na frente, a avó. Mais adiante, os tios. Dobrando a rua, mais um tio. Aliás, a rua leva o nome do bisavô do goleiro, Gustavo Becker.
A silhueta robusta de Alisson sumiu aos 15 anos. Em um ano, ele cresceu 17 centímetros. Afinou e começou a chamar a atenção de todos no Inter. Tinha deixado de ser guri para virar promessa da base.
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No início dos anos 2000. Grohe era um guri espigado dos infantis do Grêmio. Alisson, o irmão caçula de Muriel. Aos 10 anos, recém entrara na Escola Rubra, inspirado pelo irmão, cinco anos mais velho e titular do sub-15 do Inter.
Nessa época, Valdenor Nietzke e a chusma de adolescentes passageiros de sua van percebiam que estava entre eles o goleiro titular do time principal do Grêmio. Valdenor é um paranaense do oeste do Paraná. Vivia 60 quilômetros da fronteira com o Paraguai. Parou em Ivoti no final dos anos 90 porque o Grêmio colocou o olho em seus dois guris. André era zagueiro da categoria 87. Giovane, goleiro da categoria 89.
Ele escolheu Ivoti porque era pequena e alemã como a sua Marechal Cândido Rondon. Para bancar a família, Valdenor comprou a van e firmou parceria com o Grêmio. Levava até o Olímpico seus guris e os demais que o clube indicava. Entre eles, Muriel, à época tricolor, e Grohe. Alisson virou passageiro um pouco depois.
— O Grohe era o mais centrado. Os meninos da van diziam que ele seria goleiro do Grêmio e iria longe. Na volta para casa, comentava do treino, da bola que não tinha defendido, do que precisava melhorar — lembra Valdenor, por telefone, desde Marechal Cândido Rondon, onde hoje transporta estudantes até as universidades de Toledo.
A disciplina de Grohe reverberava nos ouvidos de Giovane. O caçula do seu Valdenor escutava as lições de moral do pai, que vinham sempre com o exemplo do guri de Campo Bom.
— O pai dizia: "Tu tens que ser como o Marcelo, olha como ele se comporta, como presta atenção nos treinos e comenta tudo o que deve melhorar" — conta Giovane, hoje com 25 anos e goleiro titular do Lajeadense.
Giovane era da turma da bagunça. Um dos mais novos da trupe, fazia par com Alisson. Para os dois, a animação na van já bastava. Os treinos eram jogo de bola. Destoavam do ar responsável dos demais, já conscientes de que começavam a construir ali seu futuro. Grohe juntou essa percepção com a pragmática educação germânica trazida de casa. A receita de vida passada pela mãe, Dona Ilse, era simples: suor, trabalho, dedicação e disciplina.
Dona Ilse, hoje com 64 anos, nem poderia pensar diferente. O pai de Marcelo havia se afastado do trabalho de motorista da Citral por invalidez — morreu quando o goleiro completara 16 anos. Cabia a ela administrar o orçamento justo da casa simples de madeira da Rua Guarani, quase esquina com a Acrísio Martins Oliveira, na região central de Campo Bom. O salário de revisora na fábrica de calçados Catleia, onde trabalhou por 30 anos, garantia que nada faltasse ao único filho. Mas também nunca sobrava.
— O Marcelo sempre foi muito correto, centrado. Era, na nossa rua, o mais humilde. Mas tinha ótima base. A mentalidade da mãe dele era alemã, sempre ensinou que era preciso trabalhar para ter as coisas — conta Guilherme Kunzler, amigo de infância e padrinho de casamento do goleiro.
Hoje, Grohe se diverte com as histórias da infância, considerada por ele perfeita. Foto? Só se fosse em festa de algum amigo. Não tinha máquina em casa. Férias na praia? Isso era miragem no calor de Campo Bom. — Me sentia como o Chaves (personagem de TV): todos iam para Acapulco, e eu ficavam na cidade — compara, aos risos.
Por ironia, foi em um jogo na praia que ele acabou descoberto pelo Grêmio no verão de 2000. Disputava torneio em Capão da Canoa com sua escolinha, a JC Juventus, quando em meio ao jogo foi abordado pelo então diretor da base gremista José Alzir Flor da Silva.
— Tu és 87?
— Sim — respondeu Grohe, seco.
A pergunta pegou-o em má hora. Seu time levava 5 a 2 do Mont Serrat, um combinado das escolinhas de Grêmio e Inter. Além disso, sempre perguntavam sobre sua idade, desconfiados pelo fato de ser bem mais alto do que os outros guris.
O jogo acabou, e Grohe voltou para Campo Bom com convite para ir ao Olímpico. O que fez semanas depois. Como ele mesmo conta:
— Lembro bem, foi no dia 14 de março de 2000. Chovia fino, estava um diz bem cinza. Entrei no estacionamento do estádio, o time principal treinava no suplementar. Estava nervoso, nem atinei de olhar os jogadores. Imagina, era um guri de Campo Bom vindo para o Grêmio!
Grohe estava nervoso mesmo. No campo, Emerson Leão comandava o time da ISL, com estrelas como Zinho, Paulo Nunes, Amato, Astrada e Ronaldinho. Nunca sequer tinha cogitado de virar jogador. Treinava por distração e, agora, estava no Olímpico.
Mas a chance havia aparecido, e era preciso agarrá-la. A rotina ficou pesada. Aula até meio-dia, almoço em 15 minutos e espera pela van na BR-116 às 12h30min. Como Campo Bom era a última parada, chegava em casa perto das 21h. Dona Ilse o aguardava na porta. Sempre.
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Sentados na sala, tentavam convencer seu José e dona Magali de que o Beira-Rio era o melhor para o guri. Só que a conversa pouco avançava. Alisson, com a energia dos seus oito anos, interrompia a todo momento:
— Posso ir junto? Quero jogar também! Tem lugar pra mim?
— Tu és muito novo — argumentou o pai.
— Quanto mais novo melhor — rebateu o guri.
Uma década depois, Loss era o técnico de Alisson no sub-20. Não esquecia daquela reunião.
— O Osmar sempre me dizia: "Tu eras chato pra caramba, ficava pulando em volta da gente".
Na véspera do primeiro treino, Alisson e Muriel fizeram um fórum no quarto. O caçula queria treinar no gol. O mais velho insistia para que fosse na linha. Venceu. Foi de volante. Mas a confusão de piás correndo todos atrás de uma bola só o deixou meio perdido. No treino seguinte, comunicou o treinador:
— Como não tem goleiro, eu vou pro gol.
Ficou três meses. Voltou dois anos depois. Para ficar. Mas a mãe, Magali, desconfiava do futuro do caçula. Era gordinho e demorava a cair para defender a bola. Em conversas ao pé do ouvido, relatava seu temor ao marido, seu José. Sem contar que levava tudo na brincadeira. Aprontava sempre que havia uma brecha.
— O Alisson gostava muito de aprontar. Era gordinho, mas também alto — lembra o centroavante Leo, parceiro de infância, hoje no Cerâmica.
Dona Magali vigiava de cima a geladeira. Controlava com mão firme o refrigerante e os doces do caçula. Mesmo que gastasse energia correndo atrás da bola. Quando não estava jogando no Inter, se esforçava na linha no asfalto da rua de casa.
A família já havia trocado o apartamento pelo endereço atual, uma casa de dois pisos no seio da família. Aquela quadra no bairro Canudos é reduto dos Becker. Do lado, mora a prima. Na frente, a avó. Mais adiante, os tios. Dobrando a rua, mais um tio. Aliás, a rua leva o nome do bisavô do goleiro, Gustavo Becker.
A silhueta robusta de Alisson sumiu aos 15 anos. Em um ano, ele cresceu 17 centímetros. Afinou e começou a chamar a atenção de todos no Inter. Tinha deixado de ser guri para virar promessa da base.
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