Felipão torceu nariz para Paulo Nunes antes de montar time campeão de 95

Sem dinheiro, direção precisava repor peças perdidas e montou equipe que até rima. "Espalhamos que tínhamos um time médio, mas o time era muito bom", diz dirigente


Fonte: GloboEsporte

Felipão torceu nariz para Paulo Nunes antes de montar time campeão de 95

O torcedor gremista precisa apenas fechar os olhos para voltar como num estalar de dedos à noite de 30 de agosto de 1995, quando Salvatore Imperatore deu fim à partida no esverdeado - e frustrado - Atanasio Girardot. Era o empate que o Grêmio precisava para, há 20 anos, calar o caldeirão do Atlético Nacional e ser bicampeão da Libertadores.

Instantânea também é a lembrança de um time que até hoje povoa o imaginário tricolor. Não há fã que ouse errar os 11 nomes. A escalação até rima com Carlos Miguel e… Jardel. Para jogar por música, no entanto, os comandados de Luiz Felipe Scolari passaram por muito sufoco. A começar pela própria montagem da equipe, repleta de casos, acasos, idas, vindas e, acima de tudo, uma sucessão de acertos até o choro de alegria em Medellín.


Grêmio que jogou a final foi imortalizado na história (Foto: Divulgação/ Grêmio.net)




O GloboEsporte.com inicia nesta quarta-feira uma série de reportagens especiais, em textos e vídeos, em homenagem aos 20 anos da conquista. E começa do começo. De como foi formado um dos maiores, se não o maior, time da história do Grêmio. Da polêmica contratação de Arce à quase negativa de Jardel, há muita história que o rolar da bola deixa passar despercebido. E que agora é passado a limpo, em azul, preto e branco.

Era proibido errar. E obrigatório saber destruir e reconstruir. Em novembro de 1994, o Grêmio despertou para o sonho do bi da América. Havia conquistado em agosto outro bicampeonato, da Copa do Brasil, que dera a vaga ao torneio continental. O desafio era levantar uma nova taça, mas com outro time. Os campeões nacionais se valorizaram e ajudaram a direção a rechear os cofres.

Líderes da equipe, o zagueiro Agnaldo e o volante e capitão Pingo foram vendidos por 1,6 milhão de dólares. Com pouco menos do que isso, o presidente Fábio Koff e o vice de futebol Luís Carlos Silveira Martins, o Cacalo, contrataram dez jogadores no período de um mês enquanto apostavam na base que brilhara em 1994, casos de Danrlei, Roger e Carlos Miguel - Emerson se lesionou gravemente no Gauchão e não foi inscrito. Depois, ainda chegaria Rivarola para a segunda fase.


- Quando o doutor Fábio Koff assumiu como presidente do Grêmio em dezembro de 1992 e me convidou para ser o vice-presidente de futebol, nós conversamos, e a primeira coisa que ele me disse era essa obsessão do Grêmio: ganhar a Libertadores - atesta Cacalo. - Queríamos uma equipe competitiva, que soubesse honrar a camisa do Grêmio, mexer com o torcedor, motivar o torcedor, lotar, mas que também soubesse jogar futebol. Nos encarregamos de espalhar de que tínhamos um time médio, mas nosso time era muito bom, e eles acreditaram que nosso time era médio e, toda vez que acreditavam, a gente ia lá e ganhava deles.

Do total de 11 caras novas, sete acabaram a campanha como titulares. Resultado exitoso de uma força-tarefa de olheiros espalhados pelos quatro cantos da América Latina, incluindo dirigentes e torcedores anônimos. Até ex-rival ajudou.

> Confira abaixo histórias de um time imortal:


BOCA JUNIORS QUERIA ARCE
A controversa contratação de Arce, por exemplo, passou por um divino aviso do ex-goleiro do Inter Benítez. Campeão brasileiro defendendo a meta vermelha, o paraguaio alertou Cacalo que, no Paraguai, havia um lateral-direito fenomenal. Sem rodeios, o dirigente tricolor pegou o primeiro voo a Assunção. Precisou de dez minutos para chancelar a compra. Não antes sem vencer a concorrência do Boca Juniors.

O sucesso de Arce, dono de uma bola parada mortífera que o levaria também ao Palmeiras e à Copa do Mundo, é uma vitória pessoal de Cacalo. Ninguém conhecia aquele mirrado lateral. A crônica esportiva da época, aliás, tratou a contratação com um erro tático. Informações davam conta que Arce era, na verdade, um ponteiro, quase um atacante.

- Foi o jogador que mais sofri crítica quando contratei, porque ninguém conhecia - sorri Cacalo ao lembrar os dois gols de Arce contra o Nacional-EQU que deram a primeira vitória ao time naquela Libertadores.

A chegada do outro paraguaio foi obra do olho de lince de Fábio Koff. O Grêmio via necessidade de um novo zagueiro para as oitavas de final, dadas as críticas sobre a dupla formada por Adilson e Luciano - expulso duas vezes na primeira fase, Adilson estava ameaçado, mas, no fim, terminaria como o capitão América.

O presidente foi até Cordoba, na Argentina, assistir ao jogo do Talleres. Gostou de Rivarola. E o comprou. Com 30 anos, chegava ao elenco para ser o jogador mais velho. E também o mais temido. Pelo próprio grupo.

- O Rivarola daquele tamanho, quando sorri, parece que está brabo contigo. Ficou todo mundo com medo do Rivarola, não sorria para ninguém. Mas era o jeitão dele. Era um cara que era um pai para a gente. Me ensinou muita coisa. Ele não precisava falar. Tu olhava para ele e sabia o que queria - elogia Danrlei, titular no gol com apenas 21 anos.

PAULO NUNES INDESEJADO POR FELIPÃO
Os paraguaios não foram os únicos desconhecidos a desembarcar no Aeroporto Salgado Filho para vestir a camiseta do Grêmio. Quem poderia imaginar que Paulo Nunes havia aportado na capital gaúcha como uma completa incógnita e ofuscado por outro reforço?

Foi assim em 20 de janeiro, dias antes da pré-temporada em Canela. As páginas dos jornais destacavam Magno Mocelin, ou “Romagno”, que chegava por empréstimo do Flamengo como a esperança de gols do Tricolor.

O magrela Paulo Nunes foi contratado dentro da composição do negócio. Felipão não queria sua contratação. Detrás de seu bigode, o treinador argumentava que o físico acanhado do atacante flamenguista naufragaria em meio às agruras do Gauchão e da Libertadores. Uma grave lesão de joelho em Magno forçou Scolari a mudar de opinião.

- Nós olhamos praticamente juntos os jogadores, mas sempre a palavra final era dele (Felipão). Muito embora tenha trazido jogadores e entregue para trabalhar. Aí, ele trabalhou muito bem. Paulo Nunes foi o maior exemplo - recorda Cacalo. - Quando chegou, Felipão achou ele muito magrinho.

PAPO RETO PARA ENQUADRAR JOIA
O infortúnio de Magno não foi caso isolado. Outro jogador contratado para dar experiência após as saídas de Agnaldo e Pingo, Vagner Mancini se lesionou logo após a estreia na Libertadores, a dolorosa derrota para o Palmeiras em São Paulo. Quem seria o novo camisa 10? Felipão olhava para o banco e só via Arilson, jovem das categorias de base que, assim como o titular Carlos Miguel, era canhoto.

Conciliar duas habilidosas pernas esquerdas não era o mais difícil. Arilson era bom de bola, mas faltava ser melhor de cabeça. Com a autoridade de quem já fora a Tóquio antes, com a camisa do São Paulo, Goiano chamou Arilson para uma conversa. Chegava a hora de colocar juízo no menino que, um ano depois, ficaria famoso por fugir da concentração da seleção olímpica, treinada por Zagallo.

- Tive a oportunidade de estar muito próximo a ele, de conversar com ele, mudar essa imagem na cabeça do Felipe. Falei: “tem que mudar essa imagem, você vai ser importante para nós. O treinador não tem confiança de repetir a escalação com você”. Comecei a fazer um trabalho com ele. Deu certo - sorri o ex-volante.

Goiano foi contratado graças a intrincada rede de gremistas e amigos criada pela direção em busca de um garimpo certeiro para 1995. Após breve passagem pelo São Paulo, o volante de exímia cobrança de falta estava esquecido no longínquo Remo, do Pará. Recebeu uma ligação de Koff após recomendação do primo de Felipão, Darlan Schneider, então preparador físico do Novorizontino, antigo clube de Goiano.

- Tenho muita gratidão por ele, por ter passado as minhas características para o Felipe. Tinha uma proposta superior do Botafogo, mas fiz a escolha certa - conta.

LIDERANÇAS CONHECIDAS
Num elenco cheio de jovens e apostas, era preciso, quase obrigatório, acertar em cheio nos nomes mais experientes. O Grêmio queria líderes. E foi buscá-los com cuidado cirúrgico. O homem responsável por guarnecer a defesa não poderia ser outro. O sergipano bom de bola e bom de briga que até hoje atende por Dinho. Para chefiar a zaga, Adilson. Ambos foram contratados em episódios que envolvem o maior rival.

Felipão e Cacalo não tiveram dúvidas sobre a qualidade do já conhecido Dinho, bicampeão da América e do mundo com o São Paulo. Em 1994, assistiram a vitória do Santos sobre o Inter, com atuação destacada do volante.

- Quem fazia as contratações era o presidente Fábio Koff. Ele disse que só tínhamos dinheiro para um volante. Mas conseguimos trazer Goiano e o Dinho - sorri Cacalo.

Um ano antes de Dinho chamar a atenção do Grêmio, Adilson começou a entrar nas pretensões da direção. Foi pelo que desempenhou no Inter em 1993 é que o zagueiro chegou ao Tricolor. Praticamente de graça, com o passe livre.

- Quando o Grêmio falou que tinha fechado o grupo, foram muito fortes as criticas, jogadores desacreditados, que estavam sem atuar nos seus clubes. O Adilson e o Dinho eram as maiores referências, mesmo o Adilson vindo de duas fraturas de tíbia. Enfim, existiam muitas dúvidas - ressalva Carlos Miguel, um jovem da base campeão da Copa do Brasil de 1994.

JARDEL QUASE NÃO CHEGOU

As dificuldades financeiras se revelavam até nas pequenas negociações. A primeira contração chegou do Interior. Alexandre estava no Pelotas, após passagem pelo Inter, e acabou parando no Olímpico diante um suado pagamento parcelado ao clube da zona sul do estado.

A última contratação também foi para o ataque. Talvez a mais importante. Ninguém sabia, era impossível ser tão otimista, mas, ao buscar o esguio e desengonçado centroavante do Vasco, o Grêmio estava descobrindo o futuro artilheiro da América.

A história de Jardel com o Grêmio começou muito antes. Ainda numa remota Copa São Paulo de Futebol Júnior, anotou três gols sobre Danrlei. Mas o jogo-chave viria em 1994, já como profissional pelo Vasco, justamente quando Jardel não anotaria. Graças a um inspirado Danrlei. No banco de reservas ao lado de Felipão, Cacalo bradou:

- Aí está o nosso centroavante.
Gremista não é otário. Quem tem Jardel, não precisa de Romário
Torcedores na chegada
de Jardel a Porto Alegre

Por pouco, o sonho não virou pesadelo. Jardel estava acertado com o XV de Piracicaba para a temporada de 1995. Estava rumando ao interior paulista quando, em Porto Alegre, Cacalo invadiu a sala de Koff e discou o número de Eurico Miranda. Nem falou. Passou o pesado telefone para os presidentes conversarem.

Após aceitar a oferta, o mandatário vascaíno ameaçou voltar atrás. Queria saber por que o Grêmio não renovara o contrato do lateral Ayupe, dono da assistência para o gol de Nildo, na final da Copa do Brasil. Cacalo precisou se explicar, amansar a fera para, enfim, anunciar seu novo camisa 9. Ou melhor, 16. A 9 era do azarado Magno. No aeroporto, os torcedores que foram recepcionar Jardel entoavam, proféticos:

- Gremista não é otário. Quem tem Jardel, não precisa de Romário.
Provocação que rima, assim como o time que 20 anos depois ainda faz sorrir uma nação.

*Por Eduardo Deconto, sob supervisão de Lucas Rizzatti



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